Sunday, October 13, 2013

                Lançado sob o manto paternalista que pretende implementar algo como reparar injustiça social, o sistema de cotas caiu no gosto do governo do PT ao pretender ser uma regra que daria às pessoas com menores condições econômicas, condições de usufruir da educação superior pública. Tal sistema, de inegável apelo social, certamente renderia muito mais votos do que perderia e isto tem um apelo irresistível na aritmética política eleitoral.
                A implantação deste método de acesso ao curso superior gratuito, mantido pelo Estado, tanto a nível federal quanto estadual (por enquanto, sintomaticamente, estão excluídas do processo as escolas militares), trouxe  à luz facetas interessantes ou desconcertantes do nosso sistema de ensino como um todo, levando-nos a reavaliar paradigmas e a questionar  certezas pedagógicas por muitos anos indelevelmente tatuadas em nossas convicções.
                Implantado sob forte barragem midiática, e agora, recentemente, objeto de uma peça publicitária quase ridícula, o sistema estabelece critérios para a entrada nos cursos superiores mantidos pelo Estado, critérios esses que secundarizam o tradicional método de seleção por provas de conhecimento, estabelecendo cotas para candidatos de cor negra, oriundos do  sistema público de ensino de segundo grau ou do que mais a imaginação ou conveniência do momento determinar para tentar alcançar algumas metas sociais a médio prazo ou votos a curto prazo.
                O fato é que, ao contrário do que alardeavam os adversários da medida (com justa razão aqueles que ficaram prejudicados com a adoção de critérios fora do seu alcance, como cor da pele), o nível de aprendizado,  a qualidade acadêmica auferida nas universidades, não sofreu queda e parece que não se pôde mostrar que os cotistas tiveram desempenho inferior aos selecionados pelo sistema universal, agora ainda mais seletivo. Isso nos leva a diversos desdobramentos estratégicos, pedagógicos e filosóficos a respeito do ensino, particularmente ao ensino mantido pelo Estado, o mais caro de todos.
                Originalmente, mantidas quantidades e relações candidato/vaga em níveis administráveis, o processo de vestibular para Universidades públicas tinha como objetivo selecionar os mais aptos ou capazes intelectualmente para as vagas disponíveis nos seus cursos superiores. Este processo parte de um (questionado) princípio da justiça, já que exige condições iguais de todos, ampla e previamente divulgadas e a todos acessíveis (ao contrário do sistema de cotas por cor da pele, onde uma pessoa não pode adquirir cor negra para concorrer). Além disso, este método de seleção propõe como verdade que o candidato  selecionado por mérito acadêmico tem melhores condições de aprendizado no curso superior e, por consequência, melhores condições de se tornar um profissional de excelência ao fim do curso, quando ingressar no mercado de trabalho. Vamos propor então uma análise destas premissas.
                Inicialmente analisemos os objetivos estratégicos dos investimentos do Estado no ensino superior. Um primeiro e rápido olhar aponta, de imediato, um objetivo claro e primário, que é formar profissionais. O país precisa de, digamos, médicos. Isto é claro e pacífico e cabe ao Estado (aí já não é tão pacífico assim) prover o ensino de medicina para formar médicos em quantidade e qualidade para atender à população, produzir pesquisas e formar quadros docentes.  Ora, estas necessidades estratégicas, com uma razoável margem de desvio, podem ser previstas e quantificadas, mesmo num país com as nossas dimensões e população. Assim, pode-se estimar que até a próxima década o país deverá produzir um número X de profissionais de medicina para cumprir suas metas. Claro está que é do interesse de todos que estes profissionais sejam os melhores já que de sua qualidade e competência depende a saúde, e mesmo a sobrevivência, de um enorme número de pessoas e, deste modo, é razoável supor que a exigibilidade de procedimentos que garantam a melhor formação possível destes profissionais seja um interesse de todos os envolvidos  no processo, vale dizer, toda a população.
                A questão é: a demonstração de desempenho acadêmico evidenciada num exame vestibular tradicional é capaz de selecionar os candidatos com melhores chances de se tornar os profissionais mais eficientes (objetivo primário)? Ou melhor, até que ponto uma seleção vestibular por provas de conhecimento é capaz de selecionar candidatos com melhores chances de virem a ser profissionais de excelência? Até que ponto? A resposta a esta pergunta não pode contornar uma questão estatística que se traduz de uma forma bastante simples e cruel: com uma relação candidatos/vaga absurdamente elevada em função da disparidade monetária entre um curso gratuito e outro (privado) com valores proibitivos, a seleção para vagas por meio de provas tradicionais de conhecimento  adquire um caráter quase lotérico onde a diferença entre aprovação ou eliminação vai-se dar por meio de detalhes quase ou tão imponderáveis quanto a sorte, com provas elaboradas com tal nível de profundidade que ninguém é capaz de obter 100% de acertos mesmo num universo gigantesco de candidatos.
                Esta situação, e as evidências apontadas nos primeiros estudos de caso após alguns anos de implantação do sistema de cotas, nos leva inevitavelmente a indagações  importantes, tais como: de que forma a capacidade e treinamento para resolver em tempo hábil complicadíssimos problemas de física envolvendo conceitos altamente técnicos e sofisticados pode influenciar na capacidade, no potencial para um estudante de medicina se torne um excelente urologista?  De que forma o conhecimento e a capacidade de identificar uma figura de linguagem de nome estranho (um anacoluto, por exemplo) pode influenciar no potencial de um estudante de medicina para vir a ser um cirurgião de especialidade? Por enquanto, por questão de método, estamos nos atendo à medicina, mas isto vale para todas as áreas. A resposta a estas indagações nos levará a uma reanálise  dos paradigmas e currículos do ensino médio.
                Inicialmente propostos como uma formação de nível universal, que teria como objetivo proporcionar ao cidadão conhecimentos e saberes universais,  abrangendo uma ampla gama de ciências, com o fim de lhe dar condições intelectuais de compreender o mundo físico, social, biológico, histórico e político à sua volta, dando-lhe assim melhores condições de se realizar enquanto ser racional e político, o ensino médio se tornou pouco a pouco num curso sem nenhum valor em si mesmo, passando a ser unicamente um preparatório caro e exaustivo para o exame vestibular. Claro está que a lei universal da oferta e procura levou à criação de escolas particulares com estruturas e condições de levar a disputa por vagas gratuitas nas Universidades públicas a níveis desumanos, sem nenhuma chance para quem não dispusesse de recursos para pagar estes colégios de excelência. Por melhor que fossem as escolas públicas de nível médio, elas jamais conseguiriam competir com a sofisticação pedagógica e a abundância de meios que  a escola particular, a custos elevadíssimos, pode oferecer. A competição torna-se flagrantemente desigual  e, pior, sem que se consiga com isto uma melhoria auferível de qualidade nos egressos dos cursos superiores, o que seria uma consequência  que poderia, talvez, justificar  uma competição com agentes em condições tão desiguais. Uma mudança de procedimentos se impõe.  Não digamos que o sistema de cotas seja o melhor caminho, talvez o mais fácil, mais barato, de melhor retorno político. Talvez, talvez.
                Esta abordagem, calcada num suposto planejamento estratégico de amplo alcance, que determinaria por alto as necessidades do país no que diz respeito às suas necessidades de profissionais excelentes em médio prazo, esta abordagem que fundamenta todo um arcabouço lógico em torno do sistema de cotas, sofre de um grave defeito:  não existe. Não existe nenhum planejamento estratégico focado nas necessidades do país de profissionais para fundamentar a criação de vagas nos diversos cursos superiores oferecidos pelas Universidades mantidas com recursos públicos, sempre, aliás, muito mais caras do que suas irmãs particulares.
                A que objetivos estratégicos, explícitos ou tácitos, atendem as Universidades públicas? Formar quadros para o desenvolvimento do país ou pura e simplesmente aumentar o número de portadores de diploma de curso superior? Em que medida, e custo, o aumento de diplomados contribui efetivamente para  incrementar nosso índices econômicos, sociais e políticos? Em que medida ter mais cidadãos portando diplomas é um bem em si? Certamente não é fácil determinar o quanto é importante para um corretor de imóveis ser formado em biologia, um policial ter um diploma de ciências gastronômicas ou um taxista ser bacharel em direito. Salvo melhor juízo tudo parece apontar para um eloquente exemplo de  mal emprego de recurso público o Estado custear a fundo perdido a educação superior especializada se não há um propósito estratégico onde se possa encaixar o egresso dos bancos universitários. Ainda mais  se considerarmos o custo por aluno das escolas superiores mantidas pelo Estado.
                Neste cenário, onde os pesados investimentos em educação superior frequentemente não resultam em retorno estratégico na forma de produzir profissionais atuantes em suas áreas, faz todo sentido dar à educação pública de nível superior um objetivo social, à falta de um melhor  ou mais adequado a uma Universidade. Assim, os gastos gigantescos do Estado com a manutenção das Universidades servem mais para promover e implementar uma permeabilidade social  do que para financiar a formação de quadros técnicos necessários à estrutura do país. Na medida em que a simples posse de um diploma de nível superior qualquer garante acesso a concursos públicos (e a sistema diferenciado de reclusão criminal), a manipulação dos mecanismos de acesso às Universidades, favorecendo artificialmente a arbitrariamente determinados  extratos étnicos ou sociais,  promove, de algum modo, a migração social, aumentando as chances de sucesso futuro de jovens que, de outra forma, jamais teriam condições de sucesso na disputa por uma vaga numa Universidade pública e certamente não disporiam de recursos para custear uma Universidade particular.
                Por outro lado, ao se assumir que a capacitação intelectual evidenciada em exames vestibulares não é indicativo nem do bom desempenho acadêmico na Universidade e, muito menos, na qualidade do profissional habilitado pelo diploma superior,  temos que voltar os olhos para os currículos, metodologias e paradigmas que permeiam o ensino médio. Se saber usar corretamente a crase não produz nenhum resultado auferível na qualidade profissional de um dentista, se a capacidade de se resolver uma equação de segundo grau não tem nenhuma influência no exercício profissional  de um bacharel em trombone, que sentido há em extorquir os alunos de segundo grau com minúcias científicas sobre núcleos atômicos, nomes de processos biológicos das samambaias ou questões exóticas sobre moscas em trens em troca da concessão de um diploma que o habilite ao curso superior?
                É fato notório e amplamente conhecido que com a proliferação e o barateamento dos cursos superiores menos exigentes em estrutura, algumas Faculdades ou Universidades adotam como critério de entrada apenas a constatação, às vezes falha, de que o candidato não seja analfabeto  por meio de uma redação simples, e só.   Uma vez dentro, obter o diploma é uma questão que tem somente a ver com o tempo do curso e o pagamento pontual das mensalidades. O bacharel pode sair diplomado, e isto acontece sempre, tão semi analfabeto quanto entrou, na prática, é mais fácil, e mais barato, diplomar-se em um curso superior do que concluir o primeiro grau. Os cursos à distância, tão em moda hoje, são o exemplo mais real do quanto significa, em termos de capacitação real, um diploma de curso superior.
                É claro que não existem, ainda, cursos à distância de medicina, engenharia ou direito ou, muito menos, com as mensalidades a níveis tão acessíveis. Mas isto é uma questão política e burocrática que pode ser transposta a qualquer momento. Se alguém se escandalizar com a possibilidade de se ter um médico despreparado responsável pela  saúde das pessoas, deve lembrar que professores igualmente despreparados são despejados todos os anos por faculdades de pedagogia  e sob sua responsabilidade estão milhares de crianças em sua idade mais sensível e vulnerável.
                Tem-se então que a taxa de brasileiros com diploma de curso superior é uma meta ostensiva, estatisticamente mensurável e politicamente rentável ao passo que a qualidade profissional destes diplomados é um fator impossível  de se mensurar (e, na maior parte das vezes, inútil). Isto leva a uma escolha política fácil quando o caminho da qualidade não converge, como quase sempre acontece, com o da qualidade. Assim, a escolha das cotas e outros mecanismos que secundarizam, ou mesmo eliminam o tradicional processo de seleção de alunos candidatos a uma vaga em uma Universidade pública, vem na esteira de um processo de esvaziamento do ensino, de perplexidade ante a perda de sentido dos currículos e da banalização do diploma acadêmico. Neste contexto, o sistema de cotas é coerente e racional.
                Ao se aventurar numa desgastante e perdida batalha por eliminar a gratuituidade universal do ensino público de nível superior (aí excluído o ensino militar) o governo sabiamente  percebeu que não poderia enfrentar a tradição e a bandeira política dos estudantes fortemente mobilizados em torno do ensino público e gratuito, em lugar disso a sabedoria política encontrou um meio de instrumentalizar as Universidades públicas, tornando-as menos um local de produção de excelência intelectual do que um recurso para a promoção de  igualdade social. Em outra frente, sendo muito mais barato do que abrir vagas públicas, o governo investe recursos na compra de vagas nas faculdades particulares financiando bolsas para jovens estudantes sem recursos financeiros para arcar com os custos de um ensino superior particular. Ao final de um tempo chegaremos a uma equação perversa mas inelutável: ante à disparidade entre a qualidade ótima do nível de ensino das Universidades particulares (justamente por que exigiam vestibulares disputadíssimos) e o nível conhecidamente péssimo das escolas públicas de nível médio (justamente por serem universais), o governo parece ter encontrado a solução mias fácil, mais barata e que, num primeiro momento, agrada a todos os protagonistas do teatro da educação brasileira. Uma solução tão simples e intuitiva (e cruel) quanto a lei da gravidade: o caminho para baixo é sempre mais fácil.