Lançado
sob o manto paternalista que pretende implementar algo como reparar injustiça
social, o sistema de cotas caiu no gosto do governo do PT ao pretender ser uma
regra que daria às pessoas com menores condições econômicas, condições de
usufruir da educação superior pública. Tal sistema, de inegável apelo social,
certamente renderia muito mais votos do que perderia e isto tem um apelo
irresistível na aritmética política eleitoral.
A
implantação deste método de acesso ao curso superior gratuito, mantido pelo
Estado, tanto a nível federal quanto estadual (por enquanto, sintomaticamente,
estão excluídas do processo as escolas militares), trouxe à luz facetas interessantes ou
desconcertantes do nosso sistema de ensino como um todo, levando-nos a reavaliar
paradigmas e a questionar certezas
pedagógicas por muitos anos indelevelmente tatuadas em nossas convicções.
Implantado
sob forte barragem midiática, e agora, recentemente, objeto de uma peça
publicitária quase ridícula, o sistema estabelece critérios para a entrada nos
cursos superiores mantidos pelo Estado, critérios esses que secundarizam o
tradicional método de seleção por provas de conhecimento, estabelecendo cotas
para candidatos de cor negra, oriundos do
sistema público de ensino de segundo grau ou do que mais a imaginação ou
conveniência do momento determinar para tentar alcançar algumas metas sociais a
médio prazo ou votos a curto prazo.
O fato
é que, ao contrário do que alardeavam os adversários da medida (com justa razão
aqueles que ficaram prejudicados com a adoção de critérios fora do seu alcance,
como cor da pele), o nível de aprendizado,
a qualidade acadêmica auferida nas universidades, não sofreu queda e
parece que não se pôde mostrar que os cotistas tiveram desempenho inferior aos
selecionados pelo sistema universal, agora ainda mais seletivo. Isso nos leva a
diversos desdobramentos estratégicos, pedagógicos e filosóficos a respeito do
ensino, particularmente ao ensino mantido pelo Estado, o mais caro de todos.
Originalmente,
mantidas quantidades e relações candidato/vaga em níveis administráveis, o
processo de vestibular para Universidades públicas tinha como objetivo
selecionar os mais aptos ou capazes intelectualmente para as vagas disponíveis
nos seus cursos superiores. Este processo parte de um (questionado) princípio
da justiça, já que exige condições iguais de todos, ampla e previamente
divulgadas e a todos acessíveis (ao contrário do sistema de cotas por cor da
pele, onde uma pessoa não pode adquirir cor negra para concorrer). Além disso,
este método de seleção propõe como verdade que o candidato selecionado por mérito acadêmico tem melhores
condições de aprendizado no curso superior e, por consequência, melhores
condições de se tornar um profissional de excelência ao fim do curso, quando
ingressar no mercado de trabalho. Vamos propor então uma análise destas
premissas.
Inicialmente
analisemos os objetivos estratégicos dos investimentos do Estado no ensino
superior. Um primeiro e rápido olhar aponta, de imediato, um objetivo claro e
primário, que é formar profissionais. O país precisa de, digamos, médicos. Isto
é claro e pacífico e cabe ao Estado (aí já não é tão pacífico assim) prover o
ensino de medicina para formar médicos em quantidade e qualidade para atender à
população, produzir pesquisas e formar quadros docentes. Ora, estas necessidades estratégicas, com uma
razoável margem de desvio, podem ser previstas e quantificadas, mesmo num país
com as nossas dimensões e população. Assim, pode-se estimar que até a próxima
década o país deverá produzir um número X de profissionais de medicina para
cumprir suas metas. Claro está que é do interesse de todos que estes
profissionais sejam os melhores já que de sua qualidade e competência depende a saúde, e mesmo
a sobrevivência, de um enorme número de pessoas e, deste modo, é razoável supor
que a exigibilidade de procedimentos que garantam a melhor formação possível
destes profissionais seja um interesse de todos os envolvidos no processo, vale dizer, toda a população.
A
questão é: a demonstração de desempenho acadêmico evidenciada num exame
vestibular tradicional é capaz de selecionar os candidatos com melhores chances
de se tornar os profissionais mais eficientes (objetivo primário)? Ou melhor,
até que ponto uma seleção vestibular por provas de conhecimento é capaz de
selecionar candidatos com melhores chances de virem a ser profissionais de
excelência? Até que ponto? A resposta a esta pergunta não pode contornar uma
questão estatística que se traduz de uma forma bastante simples e cruel: com
uma relação candidatos/vaga absurdamente elevada em função da disparidade
monetária entre um curso gratuito e outro (privado) com valores proibitivos, a
seleção para vagas por meio de provas tradicionais de conhecimento adquire um caráter quase lotérico onde a
diferença entre aprovação ou eliminação vai-se dar por meio de detalhes quase
ou tão imponderáveis quanto a sorte, com provas elaboradas com tal nível de
profundidade que ninguém é capaz de obter 100% de acertos mesmo num universo
gigantesco de candidatos.
Esta
situação, e as evidências apontadas nos primeiros estudos de caso após alguns
anos de implantação do sistema de cotas, nos leva inevitavelmente a
indagações importantes, tais como: de
que forma a capacidade e treinamento para resolver em tempo hábil
complicadíssimos problemas de física envolvendo conceitos altamente técnicos e
sofisticados pode influenciar na capacidade, no potencial para um estudante de
medicina se torne um excelente urologista?
De que forma o conhecimento e a capacidade de identificar uma figura de
linguagem de nome estranho (um anacoluto, por exemplo) pode influenciar no
potencial de um estudante de medicina para vir a ser um cirurgião de
especialidade? Por enquanto, por questão de método, estamos nos atendo à medicina,
mas isto vale para todas as áreas. A resposta a estas indagações nos levará a
uma reanálise dos paradigmas e
currículos do ensino médio.
Inicialmente
propostos como uma formação de nível universal, que teria como objetivo
proporcionar ao cidadão conhecimentos e saberes universais, abrangendo uma ampla gama de ciências, com o
fim de lhe dar condições intelectuais de compreender o mundo físico, social,
biológico, histórico e político à sua volta, dando-lhe assim melhores condições
de se realizar enquanto ser racional e político, o ensino médio se tornou pouco
a pouco num curso sem nenhum valor em si mesmo, passando a ser unicamente um
preparatório caro e exaustivo para o exame vestibular. Claro está que a lei
universal da oferta e procura levou à criação de escolas particulares com
estruturas e condições de levar a disputa por vagas gratuitas nas Universidades
públicas a níveis desumanos, sem nenhuma chance para quem não dispusesse de
recursos para pagar estes colégios de excelência. Por melhor que fossem as
escolas públicas de nível médio, elas jamais conseguiriam competir com a
sofisticação pedagógica e a abundância de meios que a escola particular, a custos elevadíssimos,
pode oferecer. A competição torna-se flagrantemente desigual e, pior, sem que se consiga com isto uma
melhoria auferível de qualidade nos egressos dos cursos superiores, o que seria
uma consequência que poderia, talvez,
justificar uma competição com agentes em
condições tão desiguais. Uma mudança de procedimentos se impõe. Não digamos que o sistema de cotas seja o
melhor caminho, talvez o mais fácil, mais barato, de melhor retorno político.
Talvez, talvez.
Esta
abordagem, calcada num suposto planejamento estratégico de amplo alcance, que
determinaria por alto as necessidades do país no que diz respeito às suas
necessidades de profissionais excelentes em médio prazo, esta abordagem que
fundamenta todo um arcabouço lógico em torno do sistema de cotas, sofre de um
grave defeito: não existe. Não existe
nenhum planejamento estratégico focado nas necessidades do país de
profissionais para fundamentar a criação de vagas nos diversos cursos
superiores oferecidos pelas Universidades mantidas com recursos públicos,
sempre, aliás, muito mais caras do que suas irmãs particulares.
A que
objetivos estratégicos, explícitos ou tácitos, atendem as Universidades
públicas? Formar quadros para o desenvolvimento do país ou pura e simplesmente
aumentar o número de portadores de diploma de curso superior? Em que medida, e
custo, o aumento de diplomados contribui efetivamente para incrementar nosso índices econômicos, sociais
e políticos? Em que medida ter mais cidadãos portando diplomas é um bem em si?
Certamente não é fácil determinar o quanto é importante para um corretor de
imóveis ser formado em biologia, um policial ter um diploma de ciências
gastronômicas ou um taxista ser bacharel em direito. Salvo melhor juízo tudo
parece apontar para um eloquente exemplo de
mal emprego de recurso público o Estado custear a fundo perdido a
educação superior especializada se não há um propósito estratégico onde se
possa encaixar o egresso dos bancos universitários. Ainda mais se considerarmos o custo por aluno das
escolas superiores mantidas pelo Estado.
Neste
cenário, onde os pesados investimentos em educação superior frequentemente não
resultam em retorno estratégico na forma de produzir profissionais atuantes em
suas áreas, faz todo sentido dar à educação pública de nível superior um
objetivo social, à falta de um melhor ou
mais adequado a uma Universidade. Assim, os gastos gigantescos do Estado com a
manutenção das Universidades servem mais para promover e implementar uma
permeabilidade social do que para
financiar a formação de quadros técnicos necessários à estrutura do país. Na
medida em que a simples posse de um diploma de nível superior qualquer garante
acesso a concursos públicos (e a sistema diferenciado de reclusão criminal), a
manipulação dos mecanismos de acesso às Universidades, favorecendo
artificialmente a arbitrariamente determinados
extratos étnicos ou sociais,
promove, de algum modo, a migração social, aumentando as chances de
sucesso futuro de jovens que, de outra forma, jamais teriam condições de
sucesso na disputa por uma vaga numa Universidade pública e certamente não
disporiam de recursos para custear uma Universidade particular.
Por
outro lado, ao se assumir que a capacitação intelectual evidenciada em exames
vestibulares não é indicativo nem do bom desempenho acadêmico na Universidade
e, muito menos, na qualidade do profissional habilitado pelo diploma superior, temos que voltar os olhos para os currículos,
metodologias e paradigmas que permeiam o ensino médio. Se saber usar
corretamente a crase não produz nenhum resultado auferível na qualidade
profissional de um dentista, se a capacidade de se resolver uma equação de
segundo grau não tem nenhuma influência no exercício profissional de um bacharel em trombone, que sentido há em
extorquir os alunos de segundo grau com minúcias científicas sobre núcleos
atômicos, nomes de processos biológicos das samambaias ou questões exóticas sobre
moscas em trens em troca da concessão de um diploma que o habilite ao curso
superior?
É fato
notório e amplamente conhecido que com a proliferação e o barateamento dos
cursos superiores menos exigentes em estrutura, algumas Faculdades ou
Universidades adotam como critério de entrada apenas a constatação, às vezes
falha, de que o candidato não seja analfabeto por meio de uma redação simples, e só. Uma vez dentro, obter o diploma é uma
questão que tem somente a ver com o tempo do curso e o pagamento pontual das
mensalidades. O bacharel pode sair diplomado, e isto acontece sempre, tão semi
analfabeto quanto entrou, na prática, é mais fácil, e mais barato, diplomar-se
em um curso superior do que concluir o primeiro grau. Os cursos à distância,
tão em moda hoje, são o exemplo mais real do quanto significa, em termos de
capacitação real, um diploma de curso superior.
É claro
que não existem, ainda, cursos à distância de medicina, engenharia ou direito
ou, muito menos, com as mensalidades a níveis tão acessíveis. Mas isto é uma
questão política e burocrática que pode ser transposta a qualquer momento. Se
alguém se escandalizar com a possibilidade de se ter um médico despreparado
responsável pela saúde das pessoas, deve
lembrar que professores igualmente despreparados são despejados todos os anos
por faculdades de pedagogia e sob sua
responsabilidade estão milhares de crianças em sua idade mais sensível e
vulnerável.
Tem-se
então que a taxa de brasileiros com diploma de curso superior é uma meta
ostensiva, estatisticamente mensurável e politicamente rentável ao passo que a
qualidade profissional destes diplomados é um fator impossível de se mensurar (e, na maior parte das vezes,
inútil). Isto leva a uma escolha política fácil quando o caminho da qualidade não
converge, como quase sempre acontece, com o da qualidade. Assim, a escolha das
cotas e outros mecanismos que secundarizam, ou mesmo eliminam o tradicional
processo de seleção de alunos candidatos a uma vaga em uma Universidade
pública, vem na esteira de um processo de esvaziamento do ensino, de
perplexidade ante a perda de sentido dos currículos e da banalização do diploma
acadêmico. Neste contexto, o sistema de cotas é coerente e racional.
Ao se
aventurar numa desgastante e perdida batalha por eliminar a gratuituidade
universal do ensino público de nível superior (aí excluído o ensino militar) o
governo sabiamente percebeu que não
poderia enfrentar a tradição e a bandeira política dos estudantes fortemente
mobilizados em torno do ensino público e gratuito, em lugar disso a sabedoria
política encontrou um meio de instrumentalizar as Universidades públicas,
tornando-as menos um local de produção de excelência intelectual do que um
recurso para a promoção de igualdade
social. Em outra frente, sendo muito mais barato do que abrir vagas públicas, o
governo investe recursos na compra de vagas nas faculdades particulares
financiando bolsas para jovens estudantes sem recursos financeiros para arcar
com os custos de um ensino superior particular. Ao final de um tempo chegaremos
a uma equação perversa mas inelutável: ante à disparidade entre a qualidade
ótima do nível de ensino das Universidades particulares (justamente por que
exigiam vestibulares disputadíssimos) e o nível conhecidamente péssimo das
escolas públicas de nível médio (justamente por serem universais), o governo
parece ter encontrado a solução mias fácil, mais barata e que, num primeiro
momento, agrada a todos os protagonistas do teatro da educação brasileira. Uma
solução tão simples e intuitiva (e cruel) quanto a lei da gravidade: o caminho
para baixo é sempre mais fácil.